domingo, 29 de maio de 2011

Amigos Extremos


“O mais que podíamos fazer

era o que fazíamos:

saber que éramos amigos.”

Clarice Lispector

Éramos amigos extremos, ele com seu jeito atrapalhado, mas como quem me confiava tudo, todos os pedaços da sua alma - diria até mesmo que os cactos de seu coração... E já não muito diferente dele, eu vivia meio avoada e largada do mundo. Mas éramos simplesmente melhores amigos. Uns até falavam que nós acabaríamos juntos, mas não era essa sensação que tínhamos na época. Nós éramos irmãos. Não de sangue, mas de alma. Compartilhávamos as mesmas coisas, os mesmos desejos, as mesmas conquistas para o futuro.

Mas nossos caminhos, um dia, se tornaram distantes. Houve um rompimento. É que antes, tão extremo, tão intimamente extremo, passávamos todos os dias juntos a conversar conversas intermináveis, assuntos infinitos, risadas a chamar atenção, vexames e alegrias que se combinavam tão perfeitamente bem como eu e meu melhor amigo. A vida tem dessas coisas: um dia estamos tão ligados um ao outro e outro dia tudo parece evaporar. O caso foi que ele partiu para Europa por uns tempos e eu me mudei de cidade, tudo indicava que nossas vidas tinham ficado distantes...realmente tinham.

Dois anos depois fomos nos encontrar, a alegria parecia a mesma, os sorrisos pareciam os mesmos, a intimidade não havia mudado, só o tempo, talvez, tivesse corroído alguma coisa de nossa essência e os assuntos, agora, já não eram tão infinitos como antes. Nós calávamos inteiramente como se não existisse mais nada a dizer um para o outro, como se tudo que tivéssemos de igual, já tivesse sido dito e que agora, só sobravam às diferenças e a vontade recíproca de calar. Calamo-nos.

Eu, naquela intensidade extrema do silêncio, não me constrangi, estava apenas profundamente ligada aquele ser na minha frente e percebi que nunca, nunca havia tido tempo de reparar em como ele era fisicamente. Fiquei observando os seus traços... a sua boca torta virada para o lado esquerdo, o seu olho que tinha uma diferença métrica visível mediante ao outro, o seu nariz que era achatado e alongado, as marcas de espinha que indicavam a passada puberdade! Indicavam nossos tempos mais íntimos!

Logo, larguei tudo isso e fui olhar a profundidade de seus olhos... eles estavam em algum lugar no chão, talvez estivesse pensando na gente, talvez estivesse pensando na vida, ou simplesmente olhando o meu tênis... mas ai eu vi, como aquela pessoa em minha frente era infinitamente bonita, infinitamente bonita no olhar, infinitamente bonita no jeito de ser, infinitamente bonita no gesto de me amar, pois respeitava quem eu era no silêncio.

No silêncio e na simplicidade do gesto de emitir algo sem precisar de uma palavra, ele dizia tudo, dizia tudo que eu precisava ouvir naquela hora, e não era preciso dizer mais nada. A compreensão estava justamente ali, no ato de calar, e eu nunca tinha compreendido isso. De todos os momentos que passamos juntos, aquele foi o mais feliz, recordo-me perfeitamente de cada minuto de silêncio que passamos juntos e como o silêncio, naqueles minutos, se tornou o meu ofício de alegria.

Vi que quando falávamos demasiado, um ao outro, um de si próprio, invadíamos o que era o outro, violávamos a essência do outro a ponto de nos tornar o outro! Enquanto ele falava, eu exasperadamente me tornava ele. Enquanto eu falava, ele se transformava em mim, em um processo único de mutação natural. Invadíamos um ao outro tão constantemente e, assim, praticávamos um ato de violência tão intenso e tão devastador que se tornou totalmente imperceptível aos nossos olhares. Eu, sempre na minha fluída inocência, me tornava sempre ele e estava tão acostumada com a presença dele em mim que não conseguia ver o quanto me perdia com aquela presença dominadora.

Achei em segundos de sigilo que isso era paixão. E nesses segundos, apaixonei-me perdidamente pelo meu melhor amigo. Quis beijá-lo. Tocar seus lábios, fazer muitas carícias! Pois eu, em todos os momentos da minha vida que estivemos juntos, havia me tornado ele e só agora quando já tínhamos estado um longe do outro que pude perceber o quanto o amava. E toda a paixão se derramou em mim se desenvolvendo ao ponto culminante do amor. E o amei intimamente em segredo, do meu inteiro eu para a parte dele que se refletia em mim. Aquele amor se perdia nos traços do seu rosto, na curva de seus cabelos, naquela falta de atenção exagerada do meu amor, naquele tudo que ele havia se tornado! Simplesmente descobri que eu o amava infinitamente mais a cada segundo, porque ele respeitava quem eu era, já não mais me agredia com palavras, já não mais abusada do meu eu pelo espaçamento do seu ego. Ele via e calava.

A admiração que me tomou foi tanta que eu quis dizer algumas palavras de ternura, dizer o quanto eu o amava, o quanto eu desejava que ficássemos o resto de nossas vidas juntos, sem ao menos necessitar de um amor corporal e só desse amor espiritual que tínhamos, e tudo me bastaria tanto, e tudo era tão completo, que nós não precisaríamos de mais nada além do olhar de um para o outro como em um átimo de amor interminável e eterno.

Nossas vidas, então, se preencheriam completamente e o sentimento nunca se esgotaria, pois fomos feitos um para a necessidade do outro, e os nossos sentimentos nos colocariam um sob o outro em uma forma de igualdade tão viva, sendo que assim saberíamos e compreenderíamos finalmente nossas discussões sobre a atitude de duas pessoas se tornarem uma síntese a ponto de serem apenas uma.

Foi exatamente nesse momento que ele fez um gesto, como que se quisesse também compartilhar tudo que estava sentindo. Notei em seus olhos que ele também havia percebido. Notei em seus olhos que ele também me amava. Segurou as minhas mãos delicadamente, as beijou, encostou-as em seu rosto, olhou em meus olhos atingindo o ponto extremo de nossas amizades e:

- Acho que é hora de eu ir embora... Está tarde...

Nunca mais nos vimos, o assunto havia acabado.

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